Friday, May 08, 2009

A estratégica eleição no Líbano por Lejeune Mirhan*

Esta semana poderíamos tratar de dois assuntos, ambos importantes: o cancelamento da visita do presidente do Irã ao Brasil, bem como as repercussões que ainda reverberam de suas declarações na Conferência anti-racista, vinda, inclusive de setores de esquerda e o giro que o fascista Avigdor Liebermann, chanceler de Israel faz pela Europa para falar contra o Estado palestino, mas, em função da data que a coluna vai ao ar – 7 de maio – estamos a um mês das estratégicas eleições libanesas. E sobre isso quero dar algumas opiniões.


Nasralláh, liderança emergente no Líbano

A democracia libanesa

Se analisarmos a política brasileira nem sempre conseguimos produzir documentos com a profundidade que desejamos, imagina tecermos uma análise da política interna libanesa. Estudamos o Oriente Médio há tempos, mas vivendo muito distante dessa realidade. Mas, apesar da complexidade, vamos nos arriscar.

O Líbano é um dos mais antigos e prósperos países árabes existentes no Oriente Médio. Viveu uma guerra civil que quase leva o país a uma divisão territorial e religiosa, a uma cantonização e que durou 15 longos anos. Inicia-se em 1975 e praticamente só é encerrada em 1990.

Não vamos aqui detalhar os atores e o processo que levou a essa guerra civil. Mas ela tem origem, por assim dizer, na imensa imigração e deslocamentos humanos palestinos na região do Sul do país, iniciados com a diáspora palestina desde 1948. Após a fundação da OLP, os grupos mais revolucionários e de esquerda, acabaram por se transferir para o Líbano, alterando de certa forma o já frágil equilíbrio que vinha sendo mantido entre as forças políticas e as correntes religiosas desde 1943.

Nessa guerra estiveram envolvidos membros de milícias cristãs, drusas, islâmicas (xiitas e sunitas), grupos que posteriormente dividiram-se e formaram novos agrupamentos políticos. Muitos desses ainda hoje possuem forte presença no cenário político-partidário libanês.

A paz começa a se desenhar a partir de uma reunião histórica na cidade de Taif na Arábia Saudita, ocorrida em setembro de 1989. Nessa cidade, reuniram-se 62 deputados libaneses, membro do Parlamento Libanês (cujas passagens, inclusive, foram financiadas pelo riquíssimo empresário Hafic Hariri, participante desse evento e desse acordo, posteriormente primeiro ministro e assassinado em 2005).

A proposta de estabelecer os acordos de paz entre as facções libanesas, entre as correntes políticas e religiosas, acabou sendo votada por 58 votos a quatro e o referido acordo foi assinado em 21 de outubro do mesmo ano na referida cidade. Ficou conhecido como os “Acordos de Taif”. Nele manteve-se a tradição de entregar a presidência do país a um cristão maronita (mais moderado) e houve um esvaziamento do poder da presidência. O primeiro ministro ficaria sempre com um muçulmano sunita e a presidência do parlamento ficaria sempre com um muçulmano xiita (este cargo foi ocupado por muitos anos por Nabi Berry). Com isso manteve-se uma tradição que veio do chamado Pacto Nacional Libanês de 1943.

No entanto, os grupos políticos que se digladiaram na guerra civil por 15 anos, mantiveram muitas das suas divergências após esse período. A presença da Síria, tanto na forma da influência política, como a presença militar com tropas, a pedido do governo libanês que se instaurou a partir de 1990, sempre gerou problemas políticos internos, sendo que algumas facções nunca aceitaram essa presença militar. Na verdade o centro da questão não era a presença da Síria ou não, mas sim o alinhamento e a influência do Líbano sob a órbita dos Estados Unidos. Nem se tratava mais de alinhamento com a União Soviética, pois no ano seguinte ao acordo, em 1991, esta desabaria completamente.

Assim, o centro da questão era ser um satélite dos EUA e consequentemente de Israel ou manter-se alinhado com os povos árabes, pela soberania e independência do Líbano. Em fevereiro de 2005, o líder de correntes sunitas e ex-ministro Hafic Hariri foi assassinado. Os oportunistas de plantão apontaram de imediato o dedo acusador para o governo da Síria, o que menos tinha interesses em que isso ocorresse. Isso, mais uma vez, rompe certo equilíbrio político existente. No entanto, esse episódio acabou por precipitar a saída das tropas sírias do Líbano. Movimentos de massa acabaram ocorrendo, protestos e no processo eleitoral, as forças mais conservadoras venceram as eleições. O Movimento “14 de Março”, liderado pelo filho do ex-primeiro ministro assassinado, Saad Hariri, acabou constituindo maioria no parlamento e a oposição ficou sendo liderada pelo Partido de Deus, chamado Hezbolláh, cujo líder é o xiita Hasan Nasralláh. Esse é o período que se chama de Revolução dos Cedros.

Bem ou mal, nos últimos anos, se contarmos de 1990 em diante, podemos dizer que o Líbano vive uma democracia estável, ainda que cheio de problemas. A liberdade partidária é ampla. Estima-se a existência de cem partidos políticos legalizados e aptos a concorrerem a um cargo eletivo. Apenas três partidos políticos são proscritos no Líbano (Guardiões dos Cedros; Partido Isolacionista Regressivo e Movimento Islâmico Amal, todos de extrema direita) (1).

Não quero aqui fornecer dados sobre as eleições de outros países árabes, como o Egito, Síria, Líbia, Tunísia, Argélia e mesmo Iraque (na época de Saddam), que são Repúblicas, mas cujas eleições seus presidentes sempre venceram as eleições com índices que chegam a 99% dos votos válidos. No Líbano isso jamais ocorreria, pela pluralidade política e ideológica que o país vive e mesmo pelas diferenças de correntes de opinião e religiosas existentes (é também uma república parlamentarista e o presidente é eleito indiretamente pelo parlamento). Por isso mesmo que o Hezbolláh não defende a instauração de uma República Islâmica no Líbano, porque isso nunca seria viável.

O quadro político atual

Apesar da profusão de partidos políticos (e há quem acha que nós no Brasil temos muitos partidos... apenas 27 para um parlamento com 594 cadeiras, sendo 513 na Câmara e 81 no Senado; no Líbano são 128 vagas na Câmara, não possuem senado e têm cem partidos!), formaram-se duas grandes coligações partidárias que concorrerão ás eleições.

São várias as correntes que participam do pleito e podem ser assim definidas: sunitas (pró-imperialistas e antiimperialistas); socialistas (conservadores, só no nome ou mais de esquerda); nacionalistas libaneses (direita) e nacionalistas sírios (de centro-esquerda); liberais (de direita) e social-liberais (direita); reformistas (de direita); federalistas; centristas; xiitas (antiimperialistas); nacionalistas árabes e nasseristas (patrióticos, de centro-esquerda); social-democratas (de direita); comunistas (todas as correntes existem vários que se proclamam comunistas, sendo que o maior de todos é o PC Libanês).

Sobre essas correntes, queremos tecer alguns comentários dentro dos blocos que a compõem.

1. Coligação “Aliança 14 de Março”

O nome deriva da data da chamada “Revolução dos Cedros”, no período que compreende o assassinato de Hariri em 14 de fevereiro e 14 de março de 2005, data de um mega comício feito em resposta ao também mega comício realizado em 8 de março pelo Hezbolláh. É o campo da direita e extrema direita. Possuem entre eles falangistas, drusos, maronitas entre outros.

Esta coligação possui hoje 64 deputados e tem o primeiro ministro Fouad Siniora (sunita). O líder é Saad Hariri, filho de Hafic. O Partido principal que encabeça a coligação é o Movimento Futuro e possui hoje sozinho 34 deputados. São seculares, mas majoritariamente sunitas e pró-imperialistas. Dessa coligação/aliança participam outros partidos importantes: Partido Socialista Progressista, cujo líder é Walid Jumblat, filho de Kamal Jumblat que, no passado, jogou papel importante, mas hoje se alinhou ao campo conservador; Forças Libanesas (extrema direita, cujo líder é Samir Geagea); Bloco de Trípoli e Democracia Radical. Ao todos, esse bloco possui 20 partidos e/ou movimentos.

Regra geral, esse campo, apesar de possuir a maioria no parlamento, é do campo conservador. Pode-se dizer que se alinham ideologicamente à direita. Ao todo a aliança possui 20 partidos e movimentos registrados. Eles pretendem manter o controle do governo, com a indicação do futuro primeiro Ministro, que deve ser sempre um sunita.

Na sua recente passagem pelo Líbano, a (desastrosa) Secretária de Estado dos Estados Unidos, cujas declarações tem sido muito ruins e que destoam do que o próprio presidente Obama tem falado, ela acabou por apoiar, de certa forma essa Aliança, ainda que não possa dar uma declaração de apoio total, pois além de ser ingerência interna na política de outro país soberano (ou que luta pela sua soberania), isso poderia tirar ainda mais votos dessa coligação.

Não temos acesso a pesquisas eleitorais, mas há indicadores de muito desgaste nessa aliança, na forma como o desastroso governo vem conduzindo o país. No bombardeio que Israel fez ao Líbano entre julho e agosto de 2006, esse agrupamento pouco fez para defender a soberania libanesa. A resistência foi encabeçada pelos militantes do Hezbolláh, que angariaram amplo prestígio na sociedade.

2. Coligação “8 de Março”

O nome deriva de um imenso comício realizado em 8 de março de 2005, quando mais de um milhão de pessoas foram às ruas de Beirute para agradecer a presença da Síria no Líbano, que acabava de se retirar. Aqui cabe o registro que o general cristão Michel Aoun, ainda que tenha integrado o campo mais conservador num primeiro momento, e que sempre foi anti-Síria quando esteve exilado na França por 15 anos, mas em 2006 muda de posição e integra esse campo oposicionista.

Assim, os principais líderes desse bloco, dessa Aliança são: Movimento Patriótico Livre, do general Aoun (cristão, mas oficialmente secular); Hezbolláh (xiita), cujo líder é Hassan Nasralláh; Movimento Amal (xiitas, mais moderados), cujo líder é Nabih Bérri. Há ainda a presença de cristão maronitas, armênios, seculares entre outros. Destaca-se aqui o Partido Comunista Libanês, cujo líder é Khaled Hadadi; a Liga dos Trabalhadores que se proclama comunista e nacionalista árabe União da Juventude Democrática Libanesa ligada ao PC Libanês. Esses agrupamentos não possuem deputados. Ao todo essa aliança tem hoje 56 deputados no parlamento e luta para fazer a maioria e governar o país. Ao todo, são 39 partidos e/ou movimentos e grupos que integram essa aliança. Registre-se a presença ainda do pequeno, mas com dois deputados Partido Socialista Árabe Baath e do Partido Nacional Social Sírio, com dois deputados e cujo líder é Assad Hardan.

Análise e perspectivas

Por esses dados, vemos que os dois maiores blocos que disputam as eleições, são integrados por 59 partidos políticos e/ou movimento e agrupamentos. Outras organizações político-partidárias perfazem mais 41 partidos, que possuem um deputado apenas e praticamente não tem chances de eleger parlamentares (a conta não fecha em 128 porque alguns deputados e partidos não concorrem às eleições).

A complexidade das eleições se explicam pelos acordos, tanto de Taif de 1989, incorporados à constituição de 1990, como pelos acordos assinados no ano passado, da qual todas as forças políticas dele participaram. Ficou conhecido como Acordos de Doha, assinado em 21 de maio de 2008, por iniciativa do Emir do Qatar, Hamad Bin Khalifa Al Thani. Por esse acordo, ocorre praticamente uma divisão de vagas no parlamento libanês entre as correntes religiosas. Foi a partir desse acordo é que foi possível eleger o general Michel Suleiman, presidente do Líbano.

Como dissemos, não temos acesso às pesquisas de opinião sobre os blocos em disputa. Mas além do desgaste de ser governo da Aliança “14 de Março”, houve um fato semana passada que chamou a atenção tanto do povo libanês como da comunidade internacional que acompanha essas estratégicas eleições. A libertação de quatro generais ligados à inteligência libanesa, que ficaram presos por quatro longos anos sob a acusação – falsa – de terem conspirado para matar Hafic Hariri. O tribunal da ONU especialmente formado para apurar os episódios – que comentamos no mesmo ano de 2005 sobre esse assunto, que violou a soberania libanesa – determinou a libertação destes generais por absoluta falta de provas. Isso fortalece imensamente o campo oposicionista.

A grande mídia vai falar que o bloco “8 de Março” é ligado á Síria e ao Irã. Vão querer confundir os eleitores. A mudança de agenda – sinalizada inclusive pelo governo fascista de Israel – de querer discutir o Irã e seu programa nuclear (pacífico) ao invés de discutir a questão palestina, não dará certo. Não vai colar, pelo menos entre os libaneses. Estes estão vendo que é muito mais benéfico ser amigo e aliado da Síria e do Irã do que dos Estados Unidos e de Israel!

O que estará em jogo nestas eleições será a soberania do Líbano, defendida hoje com firmeza pelos xiitas do Hezbolláh de Nasralláh, pelo PC Libanês de Hadadi, pelos cristãos ligados ao Movimento Patriótico Livre do general Aoun e pelos xiitas do Amal, de Bérri. Não há mais do que dois campos em disputa. O outro lado, o outro campo é do imperialismo, ainda que possa ter siglas que se digam “socialistas” ou “democracia radical” ou ainda “democracia de esquerda”. Pura fraseologia de fachada dita progressista, mas que escondem interesses dos mais escusos e reacionários possíveis.

Um governo progressista a ser eleito em 7 de junho reconhecerá de imediato a legitimidade do Hezbolláh como movimento armado de libertação e de luta pela soberania e independência do Líbano. Espera-se que nunca mais o país possa estar sujeito às invasões perpetradas por Israel em sua fronteira Sul, ainda parcialmente ocupada pelo exército israelense. A Síria será tratada como sempre deveria ter sido tratada: como país irmão do Líbano, país árabe milenar, soberano e que defende a unidade árabe, contra as políticas imperiais, coloniais e sionistas na região. Guerrilheiros e lutadores libaneses da resistência não mais serão tratados como “terroristas”, mas como deveriam ter sido sempre tratados: como lutadores pela independência nacional, como patriotas e defensores da nação árabe e libanesa. São amigos do povo libanês e não inimigos, como grande parte da mídia os trata.

Tratar o Irã como inimigo é o maior erro que o governo libanês e seus aliados fazem no momento, como o governo de Israel. Esse país já cansou de propor que todo o Oriente Médio seja desnuclearizado. Isso afetaria profundamente Israel, que é uma das nove nações do mundo a ter bombas nucleares e isso as potências ocidentais nada falam a respeito.

Não adianta – e não colará na propaganda interna do Líbano – a tentativa de demonização que Israel vem fazendo do Irã, como diz o professor Franklin Lamb (2). Este estudioso das questões libanesas menciona uma recente pesquisa onde apenas 46% declararam que a “religião é extremamente importante para mim”, apesar de toda a divisão religiosa estabelecida. Na mesma pesquisa, 90% dos muçulmanos disseram respeitar as ideias dos cristãos libaneses. Ou seja, fica claro uma elevação da consciência política do povo e dos eleitores libaneses e que colocá-los contra o Hezbolláh, vinculando esse grupo ao Irã não irá influenciar o seu voto nas eleições. O libaneses sempre souberam conviver com as diferenças e as diversidades. Os muçulmanos em sua história também. Como sempre disse, o problema não é e nunca foi religioso, mas sim político, tanto no Líbano como na palestina.

No discurso de posse de Netanyahu ele disse algo mais ou menos assim, como sinalização de mudança clara de agenda, escondendo que a questão central é a criação do Estado Palestino: “o maior de todos os perigos para Israel e para toda a humanidade esta na possibilidade de surgir um governo radical armado com bombas atômicas”. Ora, é sabido que o arsenal israelense possui entre 250 e 400 ogivas nucleares e o atual governo é o mais fascista e direitista de toda a história de 61 anos de Israel (a completar em 14 de maio próximo). Terá sido uma confissão que Bibi fazia de seu próprio governo? Que libanês vai acreditar que o Irã é inimigo do Líbano na conjuntura atual?

Não tenho bola de cristal para prever resultados eleitorais. Mas, suspeito seriamente que a coligação “8 de Março”, de centro-esquerda, patriótica e nacionalista, progressista, sagrar-se-á vencedora. A Aliança “14 de Março” deve sair derrotada nas urnas. O que precisa ficar claro de uma vez por todas é que o Irã só é inimigo do sionismo, do racismo do governo de Israel, que discrimina os palestinos e os muçulmano em seu estado de caráter judeu. Acho que os libaneses devem estar atentos, mais do que nunca, à eventuais provocações, criação de factóides políticos que podem embotar as eleições. A seguir o rumo atual, a direita deve perder as eleições.

Não me cabe fazer escolhas nestas eleições, pois sou brasileiro. Isso é uma atribuição exclusiva do povo e dos eleitores libaneses. Apenas me cabe “torcer” por assim dizer. Espero, sinceramente, que nestas estratégicas eleições – que a mídia brasileira ainda ignora completamente – vençam os que defendem um Líbano progressista, soberano, verdadeiramente independente, dono de seus destinos, que reforce a sua vocação árabe e que esteja sempre unido e irmanado com todos os países e com o povo árabe no Oriente Médio. Esse é meu desejo sincero neste momento.

Até junho voltaremos mais a este tema.

Nota

(1) Não confundir Movimento Islâmico Amal, com o Movimento Amal, que tem 15 deputados e é de linha antiimperialista e contra Israel.

(2) Atualmente pesquisador sobre o Líbano e o seu artigo pode ser lido em http://www.counterpunch.org/lamb04172009.html cujo título é Iran Offers More Than Just Cash (O Irã oferece mais do que apenas dinheiro). Aqui se comenta que pode ajudar mais o Líbano, se Estados Unidos ou o próprio Irã.




*Lejeune Mirhan, Presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo, Escritor, Arabista e Professor Membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa, Membro da International Sociological



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