Thursday, January 07, 2010

A Muralha Egípcia


Lejeune Mirhan *

Na minha coluna de final de ano, quando fiz o balanço de 2009 e as perspectivas de 2010, já havia mencionado esse assunto, polêmico de toda forma. Nenhum grande jornal no Brasil o fez até agora. Como recebo artigos de várias partes do mundo e com base em pesquisas, vi que a gravidade do assunto vai ganhando maiores espaços na mídia internacional. Por isso, na primeira coluna do ano, trato do tema.


Cidade de Rafah, fronteira de Gaza com o Egito que vive apinhada de gente


Muralhas não funcionam

Esse subtítulo é de importante artigo comparativo do maior jornalista que cobre Oriente Médio da atualidade, Robert Fisk (1) onde ele compara a muralha que vem sendo construída pelo Egito na fronteira com a Faixa de Gaza, na Palestina e uma situação parecida ocorrida em sua terra, na Inglaterra e na Irlanda, no conflito entre católicos e protestantes. E estou plenamente de acordo com ele. Muralhas que separam, que segregam povos e pessoas não funcionam e nunca funcionaram. O que me estranha é que continuam a ser construídas.

Muralhas existem desde a antiguidade. A mais famosa de todas, a da China, tem sua construção iniciada 221 antes de Cristo, ou seja, há quase 2,3 mil anos. De lá para cá tivemos muitos muros e muralhas, famosas também. A de Berlim, que caiu em novembro de 1989, mas temos também o projeto de Muro Americano, que separa vários estados americanos do México e o mais vergonhoso de todos, o Muro de Israel, que divide inclusive aldeias palestinas, segrega pessoas e corta fornecimento de água potável aos palestinos. Esse Muro já foi condenado por cortes internacionais, que ordenaram a interrupção de sua construção. Mas quem disse que Israel obedece a algum organismo internacional?

Como diz Fisk, o que vemos hoje na Palestina talvez seja a última guerra colonial em curso na história da humanidade. E tal guerra é travada com o apoio integral dos EUA, país que combateu o colonialismo inglês de armas nas mãos no século XVIII e já foi tida como uma nação anticolonial. E tal colonização baseia-se em premissas sionistas falsas, mentirosas, sendo que as duas mais famosas são “uma terra sem povo, para um povo sem terra” e “israelenses farão florescer o deserto” e outras falácias.

O bombardeio da Faixa de Gaza perpetrada pela força aérea de Israel entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009, completado um ano no último dia 27 passado, foi feito além da conivência dos EUA, com o beneplácito do Egito, nação árabe hoje completamente subjugada pelos Estados Unidos.

Só temos quatro locais para ingressarmos nesse pequeno território, do tamanho da cidade do Rio de Janeiro. Três são controlados por Israel (dois por terra e um pelo mar mediterrâneo). Ocorre que a quarta localidade (entrada leste) para essa estreita faixa de terra onde moram 1,5 milhão de palestinos (uma das mais altas densidade populacional do mundo), vem pela região chamada de Rafah, cidade fronteiriça egípcia. Durante os bombardeios do ano passado, esta localidade permaneceu fechada, como tem ficado fechado, regra geral toda a fronteira egípcia com Gaza. Isso asfixia o que o mundo tem chamado de a maior prisão a ceu aberto do mundo. Dezenas de caminhões com alimentos e ajuda humanitária vindos de todos os países deveriam entrar diariamente no território, que não tem autonomia para quase nada e onde um em cada dois adultos encontram-se desempregados.

Essa muralha, vem sendo chamada de Muralha da Morte pelos palestinos. Sua construção esta sendo feita por centenas de operários egípcios, mas supervisionados diretamente pelo Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos. As reações vêm aumentando, tanto no Egito, como em vários países e na comunidade internacional que vem levantando suas vozes contra esse cerco aos palestinos. Até em Israel vem sendo realizados protestos contra essa construção.

Mas o pior é que o projeto da Muralha é construí-la em aço muito grosso, resistente a projéteis e mísseis Qassams, usados pelos palestinos e que além de alta (uns seis metros), adentra ao subsolo outros seis metros ou ainda mais, para bloquear os túneis e as passagens subterrâneas construídas clandestinamente para o contrabando de alimentos (estima-se que existam 1,5 mil desses pequenos túneis). Israel bombardeou vários deles, mas eles continuam a existir e acabam sendo uma das poucas possibilidades da Faixa receber ajuda externa. Como os produtos – alimentos e medicamentos – entram de forma clandestina, como se fossem contrabando, eles acabam sendo muito caros, dificultando ainda mais a já sofrida vida dos palestinos. A destruição desses túneis prejudicará inclusive a economia egípcio, onde diversos negociantes dependem desse comércio.

O projeto original da Muralha Egípcia prevê o bombeamento de água para dentro desses túneis. Mas, o que é pior, essa água seria bombeada de forma envenenada. Especialistas asseguram que isso prejudicaria os palestinos ainda mais, mas prejudicaria vastas regiões da própria fronteira egípcia, impedindo a agricultura local próxima á Muralha.

Todos os pedidos de organizações humanitárias para ingressar pelo Egito de grandes comboios de caminhões lotados de alimentos e medicamentos – o maior deles, vindo da Europa com 70 caminhões trucados – vêm tendo sistematicamente seus vistos de entrada negados pelo governo egípcio, presidido por Hosni Mubarak.

É preciso registrar – e a maioria das pessoas no mundo não sabem – é que Israel vem bloqueando as três passagens para Gaza há muito tempo. Ingressam apenas e tão somente remédios essenciais e alimentos básicos. Até o simples macarrão, esta vetado da lista pelo fato que o governo de Israel considera esse alimento como não sendo essencial.

Por que o Egito vem se comportando assim?

O Egito tem seis mil anos de história. Dizem que ali surgiu a primeira civilização humana mais organizada e a primeira sociedade dividida em classes sociais, a escravista. Quando Napoleão conquistou esse país, a partir da campanha de maio de 1798, quando chega próximo às pirâmides pronuncia a famosa frase: “do alto dessas pirâmides, quatro mil anos de história vos contemplam”, em discurso aos seus soldados, para falar de respeito ao país conquistado. Errou nas contas. São mais de seis mil anos.

O Egito é o maior e mais populoso país árabe. Foi lá que, em 1954, sob o comando de jovens oficiais sob liderança de Gamal Abdel Nasser, foi criado o pan-arabismo e o nacionalismo árabe mais radicalizado (muito em baixo na atualidade). Alguns chegam a falar em “socialismo árabe”, sob influência da URSS. O Egito sempre quis a liderança do mundo árabe. E na época de Nasser praticamente a conquistou, com amplitude, com alianças e com unidade com os países vizinhos. Infelizmente, com sua morte em 1970, as coisas mudaram de rumo, quando assumiu Anuar Sadat. Também quis o Egito ser porta voz dos palestinos. Ajudou a fundar a OLP para tentar controlá-la, mas Arafat nunca aceitou essa situação. Mubarak assume com a morte de Sadat em 1981, Mubarak assume e esta até hoje (note-se a “democracia egípcia: em 56 anos o país teve três presidentes, ou seja, uma média de 18 anos por presidente...).

O que todos se perguntam hoje é o seguinte: porque o Egito impõe esse imenso sacrifício a 1,5 milhão de palestinos e faz o jogo político e militar de Israel? Algumas respostas, algumas pistas podemos explorar e quero enumerar algumas, a partir de excelente artigo, como sempre, do combativo ativista e pacifista israelense, o escritor Ury Avnery (2).

O mais sionista, reacionário e direitista que já conhecemos e estudamos chamava-se Vladimir Jabotinsky (1880-1940). Mais até do que Herzl e Gurion. Ele foi o que primeiro defendeu uma “Muralha de Ferro” (Iron Wall). Suas ideias, consideradas extremadas até por algumas correntes sionistas, que o viam com reservas, não prosperaram (3). Como diz Avnery, ninguém imaginaria que construir um muro contra palestinos fosse implementado 86 anos depois da sua proposta original, por um “líder” árabe, no caso Hosni Mubarak. É irônico, se não for trágico.

Pelo menos três razões podem ser arroladas para tentarmos explicar o comportamento equivocado – de nosso humilde ponto de vista – para que compreendamos os reais motivos que levaram um árabe praticamente romper com a luta histórica dos palestinos e fazer o completo jogo político de Israel neste momento.

1. Descolamento dos palestinos – É uma quase unanimidade entre as lideranças palestinas mais radicalizadas, que Mubarak descolou-se da luta palestina. E o faz para manter distância em particular do grupo palestino Hamas, que tem fortes e históricos vínculos com a Fraternidade Muçulmana, maior agrupamento de oposição no Egito e maior força política hoje no parlamento e na sociedade, mas que, ainda assim, não tem mais que 20% nas “eleições” gerais do país (sempre uma farsa geral, fraudadas, pois o presidente é sempre “reeleito” com 98% dos votos, como se isso fosse possível). Isso faz com que o Egito vá ficando, a cada dia, mais isolado no mundo árabe e mesmo na comunidade internacional;

2. Apoio dos Estado Unidos – Não é só Israel que recebe bilhões de dólares todos os anos do tesouro dos Estados Unidos a fundo perdido (sem qualquer contrapartida de prestação de contas). O Egito recebe todos os anos algo como dois bilhões de dólares. Para uma economia quebrada, desaquecida (sem controle populacional, a explosão demográfica é elevada e não há empregos para todos), esses recursos pesam no orçamento do país. Assim, além do alinhamento ideológico, que Mubarak tem com os EUA (e com Israel, por ter assinado a paz em separado com esse país em 1979 nos famosos acordos de Camp David que renderam o prêmio Nobel para Anuar El Sadat e Menachem Béguin, sob os auspícios de Carter, que veio a ganhar o prêmio apenas muitos anos depois desse episódio). A situação econômica do Egito é muito ruim e isso faz com que aumente a sua dependência e vinculação política e ideológica dos Estados Unidos;

3. Os eixos do Oriente Médio – Mubarak faz uma análise geopolítica da região e das forças que estão em jogo. Deixar livre essa passagem da imensa fronteira egípcia seria acabar por fortalecer o que se chama de Eixo Damasco-Gaza (Síria e Hamas) e ainda Teerã-Hizbollah-Beirute (Irã e os xiitas libaneses), em detrimento do eixo que Mubarak se alinha que é formado por Cairo-Riad-Amã-Ramallah (Egito, Jordânia, Arábia Saudita e Fatah). Nem que para isso tenha que impor imenso sacrifício aos palestinos – como vem fazendo, impedindo entrada da carregamentos até das Nações Unidas – Mubarak aposta no enfraquecimento do grupo Hamas, no seu isolamento e, no limite, que a própria população palestina se levante contra suas lideranças nessa faixa territorial. Errará, como Israel errou, nessa estratégia, pois o Hamas, mesmo tendo sido bombardeado 22 dias seguidos ano passado, não se enfraqueceu, ao contrário, acabou se fortalecendo.

Esperemos que esse Muro e outras muralhas existentes que separam, segregam, dividem, sejam, de uma vez por todas, demolidas, destruídas e derrubadas. É nosso desejo nesta primeira coluna do ano de 2010.

Aproveito para desejar aos meus leitores que tenham um grande ano de muitas lutas e sucessos, pessoais e os coletivos de que nosso sofrido povo brasileiro e palestino, tanto precisam.

(1) A matéria pode ser lida em http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/fisk/robert-fiskrsquos-world-walls-never-work-in-the-middle-east-or-in-ireland-1855417.html

(2) A matéria pode ser lida em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1262516758/

(3) Veja no original em inglês o artigo em http://www.marxists.de/middleast/ironwall/ironwall.htm

* Presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo, escritor, arabista e professor. Membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa e da International Sociological Association.

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